O Espelho de Clarice
Em seus 29 anos de idade, Clarice, decidida, disse que queria descer do trem azul da solidão de sua vida, que a arte não fazia mais sentido, tornara ela uma mulher demasiadamente solitária, passional às nuances do seu cotidiano vazio. Afirmou para si mesma que a arte era somente um objeto virtual, uma representação da vida em variações de cores, um objeto de desejo, uma projeção daquilo que não podemos obter na vida real. Foi numa noite de quarta-feira, dez horas da noite, Afonso não tinha chegado do trabalho ainda, provavelmente ele tinha saído com os amigos depois do trabalho para tomar cerveja. Impaciente em casa, Clarice foi até o seu quarto, estava vestida apenas de calcinha e uma camiseta básica – se olhou no espelho e se sentiu melhor, sensual e desejante por uma sensação infinita de prazeres. Para ficar mais sensual, passou um batom vermelho e afirmou para si mesma diante do espelho “preciso de mais arte na minha vida”.
O Espelho de Clarice – Parte 2
Clarice acordou na manhã seguinte, ainda com a ideia fixa na cabeça que precisava de mais arte em sua vida, se olhou no espelho novamente, o seu rosto estava cheio de manchas de batom. De início pensou que foi Afonso que beijara ela enquanto ela dormia, mas descartou logo essa ideia suja, lembrou que ela tinha passado batom antes de dormir, e que Afonso não tem inclinações de um necrófilo – ele chegou bêbado, está enjoado de mim, acho que o subterfúgio dele mesmo é esse, encher a cara com os amigos para não entrar na monotonia do nosso tenro noivado e do nosso sexo. Não pensou duas vezes e escreveu no seu bloco de notas o nome do seu novo quadro, que deu o título de Mudança com Batom, que infelizmente ou felizmente, ela precisava dessa mudança, e seria uma mudança escarlate.
O espelho de Clarice – Parte 03
Clarice começou a pensar no que iria fazer para realizar essa tal mudança escarlate que ela tanto desejava, olhou para seu quadro que terminara de pintar e, começou a decifrar os enigmas do seu subconsciente retratado na tela. Primeiramente foi no mais óbvio que era o avião, que significava que ela precisava viajar, sair da sua cidade, que considerava um tanto monótona pra ter o que ela tanto desejava. Depois do avião observou a mulher na pintura, sozinha, solitária, num deserto e pensando qual caminho traçar. No entanto, essa mulher estava de cabeça erguida, vestida de preto. Não demorou muito para Clarice transcender e, meditou logo em seguida na frase de Nietzsche que tanto a encantava e ao mesmo tempo odiava: “calada e vestida de preto toda mulher parece inteligente.”
O espelho de Clarice – Parte 04
E a marca de batom, o beijo. Esse ela esquecera de decifrar, e em frações de segundos Clarice conseguiu captar a mensagem que ela própria não estava conseguindo descobrir o que significava, pois já não lhe restava mais nenhum sentimento para com Afonso, que era na verdade o beijo de despedida para ele. Aquele quadro, ela não iria levar contigo em sua nova jornada, seria sua carta de despedida em formas, símbolos e cores que deixou para o obtuso cérebro de Afonso decifrar, para que ele em algum dia contemplativo de sua vida parasse para observar a simples mensagem que Clarice queria passar para ele. Isso quando ele estivesse distante do futebol, dos amigos e das rodadas de cervejas, enfim, os pequenos detalhes e motivos que ela tinha para cair fora da vida de Afonso. Clarice já se sentia entediada sentada na frente do quadro, estava apenas com um roupão preto que costumava usar depois do banho, de batom e levemente maquiada. Resolveu que tinha que tomar uma atitude, traçar o seu destino, para isso ela tinha bastante dinheiro na conta para recomeçar uma nova vida e, se lançar para onde quisesse ir. Pensou em passar um ano sabático, só viajando e curtindo outros países, não queria viver mais em Salvador, mas, por mais que lhe soasse clichê e também muito cômodo para ela, pensou em ficar mesmo no Brasil, ir para São Paulo, uma cidade que ela já conhecia, o que poderia lhe caber bem também para consumir os seus desejos e sonhos.
A Paulicéia Desvairada, a cidade que não dorme, parecia que iria ser o novo destino de Clarice.
O Espelho de Clarice – Parte 05
Ir para a cidade que me acolhe na multidão, serei outra nesse mar de gente encontradas em si próprias — ai daquele que não muda com uma mudança qualquer e, no fundo, somos todos diferentes em outro lugar do mundo, e esse é o meu parque de diversão, terei o sabor de me reinventar novamente, recuperarei toda a minha inocência de novo — virgem, de alma, essa será eu quando tocar na vida novamente de meu perdido amado Victor, devo encontrar ele na Rua Augusta ou no parlapatões, conversando — tentando convencer um beijo e seduzir atrizes lésbicas na saída do teatro. Victor, o meu underground mais leve no jeito de ser que conheço.
Adeus vidinha, adeus Afonso.
O Espelho de Clarice – Parte 06
Clarice chegou no final de outono em São Paulo, já estava bem frio o clima na cidade, chegou no Aeroporto de Guarulhos pela noite, com uma bota vermelha de couro, calça jeans e um sobretudo preto. Pensou que iria chamar bastante atenção no Aeroporto, mas lembrou logo que tinha mil mulheres vestidas como ela em São Paulo, mas, mesmo assim não perdeu sua autoestima e seguiu em frente. Pensou em ligar para Victor para buscá-la, mas achou melhor fazer uma surpresa para ele em outra circunstância, assim como ela tinha planejado encontrá-lo na noite no Parlapatões ou na Rua Augusta. Pensou em mais alguém e não veio em mente ninguém mais amigável para lhe fazer essa cortesia. Fumou um cigarro e entrou no primeiro táxi que avistou, disse o endereço onde iria se hospedar, num hotel na Av. Paulista e, não deixou de fazer o ritual que fazia sempre quando chegava em São Paulo (gritar). Pediu para o taxista não se assustar, que ela só iria dá um grito e fechar a janela novamente. Gritou extasiada, aquilo lhe trazia uma paz e um grande vibração frenética ao mesmo tempo, era a síntese e a antítese da cidade em perfeito equilíbrio com ela.
O Espelho de Clarice – Parte 07
Clarice acordou às dez horas da manhã no hotel, olhou para a mesa que ficava na frente da cama e viu uma garrafa de vinho seca — se lembrou que tinha tomado quando chegou de viagem durante a noite — estava hospedada no décimo andar do hotel, conseguia ver quase toda a Av. Paulista. Chovia muito quando ela abriu a janela e o céu todo coberto de nuvens cinzas, assim como ela gostava de ver São Paulo, e pensou enquanto a chuva caía:
- Uma cidade com tudo para ser triste e melancólica, mas o caos brilhante da cidade ofusca a sua melancolia, que poucos poetas conseguem perceber, ela passa bem fina além dos faróis dos carros e as luzes acesas de algumas famílias nos arranha céus. Eu percebo essa melancolia, mas agora só quero o caos brilhante que mora no brilho de alguma messalina na Rua Augusta, ou aquele brilho nos olhos de Victor quando está comigo em algum bar e olha para alguma atriz lésbica. Quero beber do amargo veneno e depois voltar a mim mesma escutando a mais doce melodia. Victor, como é recíproca a nossa leviandade um com o outro e paixão, isso me deixa mais solta no mundo e junto a você sempre, uma linha tênue permanece fixando o nosso raso romance que nos afogamos.
O Espelho de Clarice – Parte 08
Sexta feira, seis horas da tarde, o céu começava a escurecer, Clarice estava ansiosa no quarto de hotel, estava fazendo muito frio nesse dia e, lhe veio na cabeça uma frase que escutou de algum mestre de Yoga que fazia antes em Salvador: “É no frio que nos esquentamos” e começou a fazer alguns exercícios complexos que ela aprendera quando frequentava a Yoga, bebia vinho em doses mínimas enquanto fazia as posições, com todo fôlego, na intenção de ter uma noite maravilhosa com Victor. Clarice se empolgou enquanto fazia os exercícios, foi tomada por um êxtase contagiante e, perdeu a noção de tempo. Depois das posições começou a entoar um mantra que permaneceu nele durante quarenta minutos, e a meditação durou cerca de uma hora — passou mais meia hora escolhendo o que usar e fez um look que curtia bastante para ir para balada em dias de frio. Escolheu uma calça preta de couro, um blazer preto e um vestido vermelho por debaixo do blazer caindo sobre a calça. Demorou mais um bom tempo na banheira tomando banho, sentindo o seu corpo relaxando e ao mesmo tempo extremamente excitado para a noite. Pensou se iria mesmo ter a sorte de encontrar Victor no Parlapatões, ou em algum barzinho na Augusta, tinha quase a certeza que iria encontrá-lo, pois o rapaz tinha o hábito de frequentar religiosamente esses locais todas as sextas feiras. Por fim, terminou todo o ritual às 23:00, chamou o elevador e deu uma última olhada no espelho, até se sentiu mais jovem com aquele vestido vermelho entre as roupas, dessa vez ela chamou bastante atenção no saguão do hotel, pois já não havia mais mil mulheres vestidas como ela.
O Espelho de Clarice – Final
Antes de entrar no táxi comprou um maço de cigarro e uma bebida num bar que ficava próximo ao hotel, se sentiu por algum momento sozinha, assim como uma garota de programa que sai à noite para fazer vida por si própria, isso a deixou meio pra baixo e sem jeito por um tempo, mas esse pensamento desapareceu logo. Chegando no teatro/bar o procurou na entrada, pensou que iria encontrá-lo tomando cerveja na porta do bar e cortejando as atrizes lésbicas ao saírem do teatro — não o encontrou e acendeu um cigarro antes de entrar. Não demorou muito para ela tomar um tremendo susto com o que viu, era Victor, ele estava fazendo um bico como garçom naquela noite. Clarice gostou do que viu, aquilo despertou um apetite a mais para à sua noite, nunca o viu vestido tão formalmente como naquele dia, mesmo como garçom, ele estava bem vestido, e tomou isso como mais uma peça para a sua fantasia na sua primeira noite em São Paulo. Clarice permaneceu do lado de fora do bar por alguns minutos, só observando Victor de longe e percebendo como ele continuava bonito, simpático e comunicativo com todos do bar. Sem ao menos ela esperar, Victor a avistou de dentro do bar e correu em direção à ela. Victor a tomou de assalto num só abraço — não sei como percebeu que ela estava ali somente por sua causa, e a tomou de assalto noite adentro de corpo a corpo.